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terça-feira, 15 de outubro de 2013

Dr. Paulo Pereira dá lição no Castelo de São Jorge



Um apontamento único e recheado de pormenores. 
A intervenção do Dr. Paulo Pereira, relações públicas da empresa do Campo Pequeno, nas tertúlias do Castelo de São Jorge, onde marcou também presença também Joaquim Bastinhas, está recheada de curiosidades. Uma verdadeira lição de cultura taurina!

As entradas de toiros em Lisboa no século XIX


1. Enquadramento político-social
O século XIX português inicia-se politicamente com as invasões francesas (1807-1810). Na eminência da entrada do exército napoleónico em Lisboa, comandado pelo General Junot, a família real foge para o Brasil, já sob as vistas, mas não ao alcance do tiro das tropas francesas. A 13 de Dezembro de 1807, a bandeira portuguesa é substituída pela bandeira francesa, no Castelo de São Jorge. As tropas francesas só viria a ser expulsas de Portugal em 1811

Assinada a paz de Paris (1814), a Portugal mais não resta que o orgulho do esforço heróico posto na defesa do seu solo. Os ingleses, que nos representaram no Congresso de Viena, em 1815, reunido a pedido das potências europeias[1], não obtiveram para Portugal qualquer reparação de guerra.

No final das invasões francesas, Portugal é, politicamente, uma espécie de protectorado britânico, onde uma Junta Governativa nomeada pelo Príncipe Regente D. João VI [2] é profundamente influenciada pelo General inglês Bredsford o qual, praticamente, exerce uma ditadura pessoal no país através daquele órgão.

Longe de iniciar um período de paz, Portugal vê-se, por vários anos, mergulhado numa grande instabilidade politica, com a ocorrência de várias conspirações, uma guerra civil (1828-1834) entre Absolutistas, partidários de D. Miguel e Liberais, partidários de D. Pedro IV, ambos filhos de D. João VI que morrera sem que a sua sucessão tivesse ficado devidamente esclarecida, sequela aliás da independência do Brasil, declarada por D. Pedro, aclamado imperador com o título de D. Pedro I Imperador do Brasil. Acabada a Guerra Civil, eclodem ainda várias revoluções.

Só perto do final do reinado de D. Maria II [3] (f, 1853), com a Regeneração (1851) vai o país finalmente entrar num período de paz e desenvolvimento conhecido pelo Fontismo e também por Regeneração. São quatro décadas que abarcam os reinados de D. Pedro V e D. Luis I e que duram até à crise do Ultimatum Inglês em 1890, já no reinado de D. Carlos I.

Mas voltemos atrás, a D. Miguel, o Absolutista. Foi um grande aficionado aos toiros. Ainda hoje é conhecido também como o Rei-Toureiro. À sua iniciativa se deve a construção da Praça de Toiros do campo de Santana, que Carlos Conde refere no fado com que iniciámos esta tertúlia. Inaugurada a 3 de Julho de 1831, foi demolida em 1889 e por ela passaram as grandes figuras do toureio de Portugal e de Espanha[4]. A Praça do Campo de Santana [5] é inaugurada durante a Guerra Civil que opôs Absolutistas e Liberais.

O tema que nos propomos abordar foi extremamente bem retratado em poesia, por Carlos Conde e, posteriormente, cantada em fado por Alfredo Marceneiro e Rodrigo, entre outros, com o título: “Domingo de Agosto”. Embora sem precisão factual, como veremos a seguir, mas como pincelada do ambiente vivido, Carlos Conde consegue fazer-nos recuar ao século XIX e reviver toda a alegria de uma entrada de toiros no Campo de Santana:

Domingo de Agosto
Nesse domingo de Agosto
Foi linda a espera de gado
Desde manhã ao sol-posto
Houve alma, toiros e fado

Não havia traquitana,
Que não estivesse enfeitada
E via-se engalanada
Toda a praça de Santana.
Gente alegra, gente lhana
Trajando com raro gosto
Fazia bem o seu posto
De toureiros e fadistas.
Que lindo rancho de artistas
Nesse domingo de Agosto.

Descantes e guitarradas
Se ouviam de manhãzinha
Gente a ver se o gado vinha,
Os campinos e as montadas.
Fizeram-se desgarradas
Com encanto e com agrado
E era já manhã, sol nado,
Quando o gado entrou na praça.
Que encantamento, que graça.
Foi linda a espera de gado.

Toirada, viva, emoção,
Encantamento e prazer
Muitas palmas, sensação
Lide, nobreza a valer.
E era tanta a sedução
Do povo bem predisposto,
Que se via em cada rosto
A alegria manifesta.
Foi um domingo de festa
Desde manhã ao sol-posto.

E à tarde encheram-se as hortas
Das mesmas gentes bizarras
E só se ouviam guitarras
Nas tascas fora de portas.
Só alta noite, horas mortas,
Após o ter-se vibrado,
Saiu o povo encantado
Ébrio de imensa alegria.
Só porque naquele dia
Houve alma, toiros e fado.

As esperas e entradas de toiros consistiam no acompanhamento das reses que iam ser lidadas, desde o ponto de concentração da manada, às portas de Lisboa, até à praça do Campo de Santana, que ao tempo ficava já nos limites da cidade. Constituía um importante divertimento popular, verdadeiramente interclassista. As referências à participação do clero são escassas. Contudo, António Roduvalho Duro, por pseudónimo “Zé Jaleco”, refere no seu livro História do Toureio em Portugal, publicado em 1907, o “gordo Padre Matheus” como um dos assíduos frequentadores das esperas. Muito provavelmente, o papel dos Padres estará mais relacionado com a administração da extrema-unção a algum incauto, acidentado durante a espera e que, por via de um previsível “passamento”, necessitasse de cuidados espirituais adequados. O certo é que a interacção nobreza-povo era muito mais evidente.

Fidalgos, burgueses, cavaleiros, boleeiros, camponeses operários, prostitutas e fadistas convergiam para o ponto de encontro com a manada, às portas de Lisboa, nas Marnotas, no concelho de Loures, onde os animais descansavam. De permeio ficavam as hortas de Carriche, do Campo Grande, os retiros com petiscos e descantes, as grandes correrias e um sem número de pequenos e grandes “faits-divers” que estão descritos por vários autores, com os mais modernos a copiarem mais ou menos “ipsis verbis”, o que os seus pares do inicio do século XX nos deixaram escrito.

João Machado Pais, num artigo publicado em 1983, na revista Análise Social, intitulado “As prostitutas na boémia dos inícios do século XX, escreve:
“As esperas de toiros constituíam motivo de franca confraternização entre boémios de várias castas, desde o Faia do Bairro Alto, até ao mais requintado aristocrata. Nas esperas de toiros, a cavalo ou de trem, ao som do fadinho chorado, lá víamos as ”cocotes chiques” ao lado da Severa, da Júlia Gorda ou da Joaquina dos Cordões”. Os “doidos Marialvas, integrados em grupos de desordeiros e beberrões, fadistas e vagabundos, alojavam-se por todas as locandas, desde o Arco do Cego até Loures, onde esperavam até alta madrugada pela largada dos toiros. Eram acompanhados pelas amantes e outras “mulheres de vida fácil”. Os próprios fidalgos trajavam à fadista. A integração era perfeita e as distinções super-orgânicas e culturais de “significado-normas-valores aparecem socialmente minimizadas”.

Machado Pais, que por sua vez cita o jornal O Boémio, de 5 de Fevereiro de 1910, aborda comportamentos e indumentárias, nestes termos:

“Aqui, um fadista de calça à boca-de-sino, cinta, jaqueta e chapéu desabado, tocando fados ou corridinho; ali um filho pródigo que andava dissipando a herança paterna; acolá um fidalgo pândego, amador da paródias das esperas, trajando igual ao fadista, com esporas nos sapatos com salto de prateleira.”

2. As esperas de toiros para o Campo de Santana
José Pedro do Carmo em “Touros, arte portuguesa”, editado em 1926, descreve a espera nos mesmos moldes que Roduvalho Duro na obra já citada, pelo que tentamos aqui fundir as duas descrições:
A condução do gado bravo para o Campo de Santana tinha o seu início à terça-feira, quando os toiros levantavam das lezírias com destino a Frielas, onde descansavam até sexta-feira, á noite para, no Sábado pelas 5 da tarde, seguirem das Marnotas para o Campo Pequeno e aí permanecerem, junto ao Palácio Galveias até à uma hora da madrugada, sendo pontualíssima essa hora para alargada definitiva em direcção aquela praça. Pelas estradas até às Marnotas, encontravam-se os melhores batedores de Lisboa, conduzindo os aficionados. As mundanas mais em voga, envoltas nas suas mantilhas graciosas, de toilettes espaventosas, sorriso nos lábios e petulantemente recostadas nas caleches tiradas a parelhas com guizeiras, não faltavam à festa. Também apareciam damas elegantíssimas.

À cabeça do gado iam os cavaleiros mais destemidos e os campinos. Pelas 5 da tarde, os touros levantavam-se das pastagens para iniciarem o percurso até ao Campo Pequeno.

Enquanto o gado descansava no Campo Pequeno, regurgitavam de aficionados as casas de pasto desde Carriche até ao Arco do Cego, sendo as mais preferidas a Nova Cintra, Patusca, José dos Santos, Quebra Bilhas, Colete Encarnado, António da Joana, entre outros, onde as guitarradas se faziam ouvir nos descantes dessa época: Emília Midões, Cesária, Maria José Formiga, Borboleta, Maria do Carmo, Manuel Serrano, Patusquinho, António dos Fósforos, José Um, Calcinhas e outros. Peixe frito, salada e vinho dominavam as ementas.

De entre os números aficionados que nunca faltavam, às esperas destacavam-se o Conde de Vimioso, O marquês de Castelo Melhor, D. Caetano de Bragança, D. Alexandre de Vila Real, Avilezes, Galveias, Maniques, D. João de Menezes, Lobo da Silveira, D. Luiz do Rego, D. António de Portugal Carlos Relvas, Marques de Belas, D. José de Melo e Castro, Visconde da Graça, Vitorino Froes, Alfredo Marreca, Alfredo Tinoco.
Dado o sinal de partida à uma hora da madrugada de domingo, o curro punha-se em marcha. O cortejo era assim organizado: à frente e bem destacados, alguns soldados de cavalaria da Guarda Municipal; a seguir e de pampilho ao ombro, junto com os campinos, alguns cavaleiros dos mais destemidos, à cabeça da manada, com o cabresto-guia à frente e os restantes envolvendo os toiros e, na retaguarda, mais soldados de cavalaria, seguidos de muitos aficionados a cavalo e de uma aluvião interminável de trens guiados pelos grandes batedores: José Maria dos Anéis, Gradil, Leonardo, “O Preto”, Cambrainha, Pingalho, Ratinho, Zé Gordo, Carlos Bonito e outros.

No meio de uma nuvem de poeira, o espectáculo era surpreendente e mal se divisavam os vultos, ouvindo-se o barulho produzido pelas ferraduras arrancando faíscas nas pedras; os incitamentos dos campinos e cavaleiros, o tanger dos chocalhos, o tilintar das guizeiras e as pragas dos transeuntes. Era um furacão que passava, que mal dava tempo aqueles a quem aturdia, para saberem o que significava.

No largo de Santa Bárbara, a cavalaria da Guarda Municipal mandava parar a multidão[6], que a custo sustinha o ímpeto da carreira, a fim de o gado ir unicamente acompanhado pelos campinos até entrar na praça. Chegado ali, permitia-se então que avançassem todas as carruagens, seguidas do povo e dos cavaleiros.
O itinerário é ainda hoje fácil de reconstituir, pois a toponímia desta parte da cidade, mais de um século volvido, mantém-se com poucas alterações: Arco do Cego, Calçada de Arroios, Largo de Santa Bárbara, Rua de Santa Bárbara, Paço da Rainha, Campo de Santana.
As corridas eram vertiginosas pela Rua de Santa Bárbara até ao Campo de Santana. Nessa batida louca e sem olhar a obstáculos nem recear desastres que tantas vezes sucederam, havia só um objectivo: Chegar primeiro á praça para ganhar a bandeirinha[7] que se achava colocada na porta dos cavaleiros. Faziam-se apostas[8]. O batedor que alcançava a referida bandeirinha podia contar com a gorjeta dos fregueses e assim adquiria a fama para fazer valer os seus serviços no futuro.

Gado tresmalhado era frequente e os acidentes também. Muitas vezes os toiros eram recuperados em plena baixa lisboeta e depois “reencaminhados” para o Campo de Santana.

3. O fim das esperas de touros
Com a demolição da praça de toiros do Campo de Santana, praticamente acabou o encanto das esperas de toiros. O terminus (Campo Pequeno) passou a ser aquele que era o ponto de partida para o Campo de Santana. A principal etapa da condução dos toiros estava assim “queimada”.

Muito embora ainda tivesse havido algumas esperas de toiros para corridas na nova praça do Campo Pequeno, inaugurada a 18 de Agosto de 1892, o certo é que as esperas jamais voltaram ao seu antigo esplendor e acabaram por se perder. Os toiros passaram a vir enjaulados de comboio até à estação de Entrecampos e, daí conduzidos para a praça, ainda e sempre nas jaulas[9].

Na verdade, tal como na canção “Vídeo killed the radio star”, o progresso, o urbanismo e a criação de novas centralidades, contribuiu para “matar” este espectáculo tão característico e tão do agrado das gentes de Lisboa.

O crescimento urbanístico de Lisboa envolveu a Praça de Toiros do Campo Pequeno, criando uma nova centralidade urbana. O progresso inviabilizou a tradição… Hoje em dia, os toiros são transportados em camiões, em jaulas individuais, das pastagens até à praça…

Contudo, em Junho de 1972, numa iniciativa do jornalista e critico tauromáquico Leopoldo Nunes ao tempo vereador na Câmara Municipal de Lisboa, realizou-se uma entrada de touros pela Calçada de Carriche até ao campo Pequeno, numa ecocação das esperas do inicio do século. O resultado foi desastroso pois tresmalharam-se toiros e cabrestos, a situação ficou incontrolável…os toiros espalharam-se um pouco por toda a cidade, houve mortos e feridos e, desde então nunca mais tal tipo de iniciativas se realizou na capital portuguesa.
Contou-nos Orlando Vicente, campino que participou nessa entrada de toiros, que, até alta madrugada, teve de perseguir um cabresto desde o Campo Grande à Alameda D. Afonso Henriques, correndo da encosta do Instituto Superior Técnico até à Fonte Luminosa e daí em sentido contrário. Ao passar por uma vivenda que ali existia à época, junto à Avenida Almirante Reis, o cabresto saltou parta o quintal. Eis senão quando a proprietária, pessoa idosa que vivia sozinha, irrompe de vassoura em punho contra o intruso, pensando que era um cão que estava estragar-lhe o jardim em, possível “ajuste de contas” com algum gato vizinho. Valeu a “estranha presença de um homem a cavalo que fez ver à senhora o perigo que corria e a convenceu a refugiar-se em casa. O cabresto foi depois neutralizado e a manada reagrupada quase de manhã. De facto além destes dois incidentes, houve correrias atrás de cabrestos na Avenida do Brasil e na Avenida Gago Coutinho.
Contudo, um pouco por todo o Ribatejo, de Vila Franca a Alcochete, da Chamusca ao Porto Alto, as esperas de toiros continuam vivas e são, como há mais de cem anos, um ponto de encontro e de são convívio entre gente de todos os estratos socioprofissionais.

Lisboa, Castelo de São Jorge, 13 de Outubro de 2013
Paulo Pereira


Bibliografia:

“História da Tauromaquia”, Duro, José Roduvalho (Zé Jaleco”), 1907
“Touros, Arte Portuguesa”, Carmo, José Pedro, 1926
“Fado Marialva”. Moraes, António Manuel, 1926
“Revista Panorama”, Número especial, 1945
“Análise Social”, João Machado Pais, 1983 “As prostitutas na boémia dos inícios do século XX”.



[1] Inglaterra, Rússia, Prússia e Áustria
[2] D. João VI, só regressaria a Portugal em 1821
[3] Foi no reinado de D. Maria II que as touradas foram proibidas 19 de Setembro de 1836 e revogada esta proibição a 30 de Junho de 1837
[4] Cúchares (1851) Frascuelo (1866), por exemplo
[5] A segunda que existiu neste local.
[6] Segundo António Manuel Moraes em Fado Marialva, publicado em 2007,”Quando o cortejo comandado pelo General Queirós e com Ezequiel Carvalho ou Ezequiel da Póvoa à cabeça, chegava ao Largo de Santa Bárbara, a Guarda Municipal a cavalo mandava parar e a multidão obedecia com muito esforço devido ao entusiasmo frenético que se apoderava dos aficionados”.
[7] De acordo com Antonio Manuel Moraes, op. Citada, “ o batedor de sege ou d etrem que a conquistasse era obsequiado com gorjetas dos clientes, ficava famoso, com lucros para futuros serviços de transporte”
[8] De acordo com Antonio Manuel Moraes, op. Citada, “Realizavam-se apostas clandestinas.”
[9] A estação ferroviária de Entrecampos foi inaugurada 20 de Maio de 1888